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‘Não falar de funk é não falar da realidade’, afirma músico pesquisador da USP

Doutorando em Música pela USP, Thiagson vê de forma problemática o projeto anti-funk aprovado pela Câmara

Isadora Stentzer

Foto: Divulgação

Doutorando em Música pela Universidade de São Paulo (USP), Thiago de Souza, o Thiagson, vê de forma problemática o projeto de lei aprovado pela câmara conhecido como “anti-funk”. O texto, que foi para sanção do prefeito Dário Saadi (Republicanos), impõe que escolas municipais, públicas ou privadas, adotem um programa que aponte os malefícios de músicas com letras que façam apologia ao crime, ao uso de drogas ou que contenham expressão pornográfica ou linguajar obsceno. Na prática, ele censura o acesso a um dos estilos musicais mais populares brasileiros: o funk.

“Os políticos conservadores sempre tentam transformar as escolas e universidades em lugares moralizantes e menos questionadores…. não poder falar sobre funk na escola significa que os alunos não podem falar da realidade que existe”, afirmou Thiagson.

Autor do livro ‘Tudo o Que Você Sempre Quis Saber Sobre Funk… Mas Tinha Medo de Perguntar’, ele cursou Música na Universidade Estadual Paulista (Unesp), é professor de Música Clássica e hoje faz doutorado na USP com uma pesquisa sobre o funk, usando suas redes sociais para desmistificar preconceitos enraizados sobre o estilo.

Em entrevista exclusiva ao Portal Porque Campinas, ele fala sobre as raízes do estilo e o porquê suas letras são consideradas inapropriadas pela elite.

Portal Porque: Por que, diante de tantos ritmos e gêneros musicais, o funk é o mais atacado? Há um contexto histórico e um algoz bem definido?
Thiagson: Música não é apenas sons. É uma criança social que representa os grupos sociais que criou determinada música. O ódio ao funk é o ódio à favela, é a fobia ao pobre, preto e favelado. Uma fobia que é a base de nossa sociedade e que muitas vezes está até nas pessoas da favela.

PP: Qual é a definição do funk music e como esse gênero se torna o funk carioca?
Thiagson: O nosso Funk brasileiro é um gênero de música eletrônica predominantemente dançante. O Funk norte americano não é música eletrônica, mas influenciou toda a cultura hip-hop da qual o Funk veio.

PP: Como esse estilo está ligado às periferias brasileiras e sobretudo à pretitude?
Thiagson: Por ter origem no hip-hop, o funk é uma cultura preta. E isso gera identificação na população negra. Durante os anos 80 e 90 o hip-hop era o “lugar” onde víamos pessoas pretas empoderadas e não subalternizadas. Isso explica como a música preta norte-americana (Miami bass e electro funk de Los Angeles) conseguiu fazer sucesso nas periferias sem passar pelos grandes meios de comunicação. Algo que contraria a ideia de que é a grande mídia que impõe uma arte às massas.

PP: O funk pode ser concebido como um movimento cultural? Quais os traços que ele carrega pra isso?
Thiagson: Sim! E mais: o funk é um complexo cultural. Funk é sobretudo música, mas também é dança, visual, visão de mundo, forma de falar e gestual. O que caracteriza o funk no geral é um hedonismo exagerado. Como assim? Uma experiência do mundo através dos sentidos de um jeito intenso. A música é alta e chamativa, assim como o visual, a linguagem (que muito comunica com poucas palavras, mas intensas)… de modo geral acho que é isso

PP: Geralmente se ataca o funk discutindo suas letras e danças provocativas. Como isso também está ligado ao movimento de quebrada?
Thiagson: Só se vê putaria no funk porque é só a putaria que as outras classes mais altas conhecem do funk. Afinal, apesar das diferenças sociais, o sexo nos iguala. Daí a classe média só entende a putaria. E ainda assim a putaria da favela é diferente. A classe-média usa outras palavras, tem outro modo de vivenciar o sexo. E o incômodo que a putaria gera é político, pois mostra como a favela vive e fala de sua sexualidade.

PP: Em uma entrevista de 2021 você disse que a música “Bum Bum Tam Tam” é mais complexa que Bach. Poderia explicar essa comparação e dar outros exemplos atuais?
Thiagson: Toda música eletrônica é mais complexa na sua realização do que a música instrumental tocada por seres humanos. Mas dizer que o MC Fiote tem uma música mais complexa que Bach mexe com a branquitude que tá acostumada a ver seus ídolos brancos como inquestionáveis. Bach só virou Bach (esse Deus da música europeia) depois do século 19 em uma onda nacionalista germânica que deu na política de Hitler… é bom sabermos disso.

PP: Há um projeto antigo na Câmara dos Deputados que aprecia o funk como manifestação. Na contrapartida, Campinas aprovou uma lei que, em resumo pode ser chamada de ‘anti-funk’, com a justificativa de preservar alunos nas escolas da exposição a esse ritmo e suas letras. Como você avalia esses dois polos que versam sobre o mesmo tema?
Thiagson: Os políticos conservadores sempre tentam transformar as escolas e universidades em lugares moralizantes e menos questionadores…. não poder falar sobre funk na escola significa que os alunos não podem falar da realidade que existe (o funk é uma realidade, e deve ser discutida)… e que tipo de escola é essa que não pode ouvir e pensar sobre a realidade? Uma escola que vota em conservadores no final da história!

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